O Papa Francisco
é actualmente um dos homens mais odiados do mundo. E quem mais o odeia não são
ateus, protestantes ou muçulmanos, mas alguns dos seus próprios seguidores.
Fora da Igreja goza de grande popularidade, afirmando-se como uma figura de uma
modéstia e uma humildade quase ostensivas. Desde o momento em que o cardeal
Jorge Bergoglio se tornou Papa em 2013, os seus gestos prenderam a atenção do
mundo: o novo Papa guiou um Fiat, transportou as próprias malas e pagou a conta
em hotéis; sobre os homossexuais,
perguntou: “Quem sou eu para julgar?”, e lavou os pés de refugiadas
muçulmanas.
Dentro da
Igreja, porém, Francisco tem
desencadeado uma reacção feroz por parte dos mais conservadores, que temem
que este novo espírito divida a Igreja ou até que a destrua. Este Verão, um
proeminente clérigo inglês disse-me: “Mal podemos esperar que ele morra. É
impublicável o que dizemos dele em privado. Sempre que dois padres se
encontram, falam sobre o quão horrível Bergoglio é… ele é como Calígula: se
tivesse um cavalo, fazia dele cardeal.” Claro que após dez minutos de repetidas
críticas, acrescentou: “Não pode publicar nada disto, senão serei despedido.”
Esta mistura de
ódio e temor é frequente entre os adversários do Papa. Francisco, o primeiro
Papa não europeu dos tempos modernos e o primeiro Papa jesuíta da História, foi
eleito como um outsider dos poderes instituídos do Vaticano e
era esperado que fizesse inimigos. Mas ninguém previu que fizesse assim tantos.
Desde a sua rápida renúncia à pompa do Vaticano, que marcou desde logo a
diferença na relação com os mais de três mil empregados civis do Vaticano, ao
seu apoio aos migrantes, às suas críticas ao capitalismo global e, acima de
tudo, à sua intenção de reexaminar as posições da Igreja relativamente ao sexo,
o Papa tem vindo a escandalizar os reaccionários e os conservadores. A julgar pelos números das votações do
último encontro mundial de bispos, quase um quarto do Colégio dos Cardeais
— o mais alto organismo da organização clerical — está convencido de que o Papa
se está a aproximar da heresia.
A questão crítica prende-se com a sua
visão sobre o divórcio. Num corte com séculos, senão milénios, de doutrina
católica, o Papa Francisco tem tentado encorajar os padres católicos a darem a
comunhão a alguns casais divorciados ou casados em segundas núpcias e a
famílias cujos pais não são casados. Os seus inimigos estão a tentar forçá-lo a
abandonar essa ideia. Como ele se tem mantido firme e mostrado uma sóbria
perseverança face ao crescente descontentamento, começam agora a preparar-se
para a guerra. No ano passado, um cardeal, com o apoio de alguns colegas já
aposentados, levantou a possibilidade de uma declaração formal de heresia — a
rejeição intencional de uma doutrina estabelecida da Igreja, pecado punível com
a excomunhão. Em Setembro, 62 católicos descontentes, nos quais se incluem um
bispo já retirado e um antigo director do Banco do Vaticano, publicaram uma
carta aberta em que apontam a Francisco sete acusações específicas de
ensinamentos heréticos.
Acusar um Papa
em funções de heresia é o equivalente católico à opção nuclear. A doutrina
afirma que o Papa não pode estar errado quando se pronuncia sobre questões
centrais da fé; portanto, se está errado, não pode ser Papa. Por outro lado, se
este Papa está certo, todos os seus antecessores têm de ter estado errados.
A discussão está
particularmente envenenada porque assenta quase na totalidade em bases
teóricas. Na prática, em quase todo o mundo, os casais que se divorciam e
voltam a casar têm acesso à comunhão. O Papa Francisco não está a propor numa
revolução, apenas o reconhecimento institucional de um sistema que já existe e
que pode até ser essencial para a sobrevivência da Igreja. Se as regras fossem
aplicadas à letra, nenhuma pessoa cujo casamento tivesse falhado poderia voltar
a ter relações sexuais. Essa não é uma boa maneira de assegurar a existência de
gerações futuras de católicos.
Mas, para os
seus detractores, as reformas cautelosas de Francisco põem em causa a
crença de que as verdades da Igreja são intemporais. Porque se não são,
perguntam os conservadores, então qual o seu valor? A batalha sobre o divórcio
e os novos casamentos põe em confronto duas ideias profundamente opostas sobre
o papel da Igreja. A insígnia do Papa são duas chaves cruzadas, que representam
as que Jesus terá supostamente dado a S. Pedro, e que simbolizam os poderes de
unir e separar, ou seja, proclamar o que é pecado e o que é permitido. Mas qual
dos poderes é hoje mais importante e mais urgente?
A hipótese de um cisma
A crise actual é
a mais séria desde que as reformas liberais dos anos 1960 fizeram com que um
grupo dissidente de conservadores da “linha dura” abandonasse a Igreja (o seu
líder, o arcebispo francês Marcel Lefebvre, viria mais tarde a ser
excomungado). Nos últimos anos, escritores conservadores têm repetidamente
levantado a hipótese de um cisma. Em 2015, o jornalista americano Ross Douhat,
um convertido ao catolicismo, escreveu um artigo para a revista Atlantic intitulado
“Irá o Papa Francisco destruir a Igreja?”; num blogue na Spectator,
o tradicionalista inglês Damian Thompson afirmou peremptoriamente que “o Papa
Francisco está em guerra com o Vaticano. Se sair vencedor, a Igreja poderá
desmoronar-se”. Segundo um arcebispo do Cazaquistão, as posições do Papa
relativamente ao divórcio e à homossexualidade permitiram que o “fumo de Satã”
envolvesse a Igreja.
A Igreja
Católica passou grande parte do último século a lutar contra a revolução
sexual, tal como havia lutado antes contra as revoluções democráticas do século
XIX, e essa luta levou-a a ter de defender uma doutrina insustentável, pela
qual toda a contracepção artificial é proibida, bem como qualquer relação
sexual fora de um casamento eterno. Como o Papa Francisco reconhece, não é
assim que as pessoas agem normalmente. E o clero também o sabe, mas é esperado
que finja que não. Ou seja, a doutrina oficial não pode ser questionada, mas
também não pode ser cumprida. Um dos lados terá de ceder e, quando tal
acontecer, a explosão resultante poderá fracturar a Igreja.
Não deixa de ser
curioso que os frequentes choques e ódios dentro da Igreja — resultantes das
posições sobre as alterações climáticas, as migrações ou o capitalismo — tenham
chegado a um ponto de não retorno numa enorme batalha sobre as implicações de
uma única nota de rodapé de um texto intitulado “A Alegria do Amor” (ou, no
original latim, Amoris Laetitia). A exortação, escrita por
Francisco, é um sumário do debate corrente sobre a questão do divórcio e numa
nota de rodapé o autor faz aparentemente uma leve afirmação de que os casais
divorciados e que voltem a casar poderão eventualmente receber a comunhão.
Com mais de mil
milhões de fiéis, a Igreja Católica é a maior organização global que o mundo
alguma vez viu, e muitos dos seus seguidores são divorciados ou pais solteiros.
Para realizar o seu trabalho por todo o mundo, a Igreja depende de trabalho
voluntário, ou seja, se os comuns fiéis deixarem de acreditar no que estão a
fazer, todo o sistema colapsa. Francisco sabe disso. Se não for capaz de conciliar
teoria e prática, a Igreja pode assistir a uma debandada. Os seus oponentes
também defendem que a Igreja enfrenta uma crise, mas a sua solução é a
contrária. Para eles, a distância ente teoria e prática é exactamente o que dá
valor e sentido à Igreja. Se tudo o que a Igreja tiver para oferecer for algo
de que as pessoas não sentem necessidade de procurar, dizem os que se opõem a
Francisco, então irá seguramente colapsar.
Liberais e conservadores: uma definição
falaciosa
Ninguém previu
este confronto quando Francisco foi eleito em 2013. Uma das razões da sua
escolha foi precisamente o objectivo de solucionar a rígida burocracia do
Vaticano, tarefa há muito adiada. O cardeal Bergoglio, de Buenos Aires, foi
eleito como um relativo outsider, o que à partida facilitaria a
eliminação de algumas das forças de bloqueio comuns ao âmago da Igreja. Mas
essa missão entrou rapidamente em rota de colisão com uma fractura ainda mais
acrimoniosa dentro da Igreja, que é geralmente descrita como a batalha entre os
“liberais”, como Francisco, e os “conservadores”, dos quais fazem parte os seus
adversários. Contudo, essa é uma definição equívoca e falaciosa.
A disputa
central põe em confronto os católicos que acreditam que a Igreja deve liderar a
agenda do mundo e os que, por outro lado, defendem que são as circunstâncias
mundiais que devem definir as posições da Igreja. Essas são, porém, as posições
idealistas: no mundo real, qualquer católico será uma mistura dessas duas
orientações, tendo, na maior parte dos casos, a predominância de uma delas.
Francisco é um
puro exemplo de um católico extrovertido, ou “virado para fora”, especialmente
se comparado com os seus antecessores imediatos. Os seus oponentes são os
introvertidos. Para muitos, a primeira coisa que os atraiu na Igreja foi
exactamente a sua distância relativamente às preocupações mundanas. Um número
surpreendente dos mais proeminentes introvertidos são protestantes americanos
convertidos, alguns impulsionados pela superficialidade dos recursos
intelectuais com que foram educados, mas muito mais por um sentimento de que o
enfraquecimento do protestantismo liberal se deve precisamente ao facto de ter
deixado de ser uma alternativa à sociedade que o rodeia. Querem mistério e
fervor, não senso comum estéril e sabedoria convencional. Nenhuma religião pode
florescer sem tal impulso.
Mas também
nenhuma religião global se pode contrapor totalmente ao mundo em que se
encontra inserida. No início dos anos 1960, um encontro que durou três anos
entre bispos de todos os quadrantes da Igreja, que ficou conhecido como o
Segundo Concílio do Vaticano, ou Vaticano II, “abriu as janelas para o mundo”,
nas palavras do Papa João XXIII, que o convocou, mas que morreu antes da sua
conclusão.
O concílio
renunciou ao anti-semitismo, abraçou a democracia, proclamou direitos humanos
universais e aboliu, em larga escala, a missa em latim. Esta última medida, em
particular, chocou os introvertidos. O escritor Evelyn Waugh, por exemplo,
recusou-se a partir desse momento a participar numa missa em inglês. Para
homens como ele, os rituais solenes de um serviço religioso realizado por um
padre de costas para a congregação, falando inteiramente em latim e encarando
Deus no altar, eram o próprio coração da Igreja — uma janela para a eternidade
reencenada a cada representação. O ritual tinha uma posição central na Igreja,
de uma forma ou de outra, desde a sua fundação.
Simbolicamente,
a mudança provocada pela nova liturgia — a troca do padre introvertido que
encarava Deus no altar pela figura extrovertida virada para a congregação — foi
imensa. Alguns conservadores ainda hoje não se reconciliaram com a
reorientação, entre os quais, o cardeal guineense Robert Sarah, que tem sido
apontado pelos introvertidos como possível sucessor de Francisco, e o cardeal americano Raymond Burke, que
tem emergido como o mais veemente opositor público de Francisco. Nas
palavras da jornalista católica inglesa Margaret Hebblethwaite, uma fervorosa
apoiante do Papa Francisco, a crise actual é nada menos que “o regresso do
Vaticano II”.
“Devemos ser
inclusivos e acolher tudo o que é humano”, afirmou Sarah num encontro no
Vaticano no ano passado, numa condenação das propostas de Francisco, “mas o que
vem do inimigo não pode nem deve ser assimilado. Não podemos seguir Cristo e
Belial! As ideologias ocidentais da homossexualidade e do aborto e o extremismo
islâmico representam nos dias de hoje o que o nazismo, o fascismo e o comunismo
representaram no século XX”.
Ressurgimento pentecostal
Nos anos
imediatamente a seguir ao concílio, freiras deitaram fora os seus hábitos,
padres descobriram as mulheres (mais de cem mil deixaram o sacerdócio para se
casarem) e teólogos livraram-se das correntes da ortodoxia introvertida. Após
150 anos de resistência e de rejeição do mundo exterior, a Igreja deu por si
completamente envolvida por esse mundo, até ao ponto em que os introvertidos
temeram que o edifício estivesse em risco de se desmoronar.
A afluência às
igrejas caiu a pique no mundo ocidental, tal como aconteceu noutras
denominações. Nos Estados Unidos, 55% dos católicos iam regularmente à missa em
1965; em 2000, esse número era de apenas 22% [em Portugal, segundo dados do
Vaticano, em 2015, existiam 9,183 milhões de católicos numa população de 10,34
milhões de pessoas, correspondendo a uma percentagem de 88,7%, mais quatro
décimas do que em 2010]. Em 1965, foram baptizados um milhão e trezentos mil
bebés nos EUA; em 2016, apenas 670 mil. Se esta tendência é ou não fruto de uma
relação causa/efeito, é algo que continua a ser ferozmente discutido. Os
introvertidos põem a culpa no abandono das verdades universais e das práticas
tradicionais; os extrovertidos acham que as mudanças na Igreja não foram
suficientes ou suficientemente rápidas.
Em 1966, um comité
papal de 69 membros, no qual se incluíam sete cardeais e 13 médicos, bem como
laicos e até algumas mulheres, votou esmagadoramente a favor do levantamento da
proibição do uso de contracepção artificial, mas o Papa Paulo VI revogou a
votação em 1968. Não podia admitir que os seus predecessores estivessem errados
e os protestantes certos. Para uma inteira geração de católicos, esta disputa
passou a simbolizar a resistência da Igreja à mudança. Nos países em
desenvolvimento, a Igreja Católica foi em grande parte ultrapassada por um
ressurgimento pentecostal, que oferecia tanto a encenação como estatuto para os
laicos e para as mulheres.
Os introvertidos
tiveram a sua vingança aquando da eleição do Papa (agora Santo Papa) João Paulo
II, em 1978. A sua Igreja polaca era caracterizada pela oposição ao mundo
exterior e aos seus líderes desde que os nazis e os comunistas dividiram o país
em 1939. João Paulo II era um homem impressionante, dotado de uma tremenda
energia e força de vontade. Era também profundamente conservador em questões de
moralidade sexual e, enquanto cardeal, tinha apresentado a justificação
intelectual para a proibição do controlo de natalidade. Desde o momento da sua
eleição que começou a moldar a Igreja à sua imagem. Mesmo que não conseguisse
imprimir-lhe o seu dinamismo e vontade, parecia que iria conseguir purgá-la da
extroversão e uma vez mais estancar as correntes do mundo secular.
Ross Douthat,
jornalista católico, foi das poucas pessoas do lado dos introvertidos a
disponibilizarem-se a falar abertamente sobre o conflito actual. Na sua
juventude foi um dos convertidos atraídos para a Igreja de João Paulo II.
Afirma hoje que “a Igreja pode ser uma barafunda, mas o importante é que o
centro seja sólido e tudo pode ser reconstruído a partir do centro. Ser
católico é ter a garantia da continuidade no centro e com isso a esperança do
restabelecimento da ordem católica”.
João Paulo II
teve o cuidado de nunca repudiar as palavras do Vaticano II, mas fez o possível
para as esvaziar do seu espírito extrovertido. Começou por impor uma disciplina
férrea ao clero e aos teólogos. Tentou também tornar o mais difícil possível a
renúncia dos padres para poderem casar. A sua aliada nesse objectivo foi a
Congregação para a Doutrina da Fé, ou CDF, antes conhecida como o Santo Ofício.
Institucionalmente, a CDF é a mais introvertida de todos os “ministérios” do
Vaticano (ou “dicastérios”, como são conhecidos desde o tempo do Império
Romano; é um detalhe que sugere o peso da inércia e da experiência institucional
— se o nome era bom para Constantino, porquê mudá-lo?).
Para a CDF, é
axiomático que o papel da Igreja é ensinar o mundo, não aprender com ele. Tem
uma longa tradição de punir teólogos que discordam: houve casos de proibição de
publicações e de despedimentos de universidades.
Ainda no início
do pontificado de João Paulo II, a CDF publicou Donum Veritatis(“O
Dom da Verdade”), documento que explica que todos os católicos devem praticar a
“submissão da vontade e do intelecto” aos ensinamentos do Papa, mesmo que não
sejam infalíveis; e que os teólogos, mesmo que possam estar em desacordo e
manifestá-lo aos seus superiores, nunca o devem fazer em público. Estas
palavras foram usadas como ameaça, às vezes até como arma, contra qualquer
pessoa suspeita de dissidência liberal. Francisco, contudo, virou estes poderes
contra os que tinham sido os seus maiores defensores. Os padres, os bispos e
até os cardeais estão ao serviço do Papa e podem ser demitidos a qualquer
momento. Sob Francisco, os conservadores aprenderam essa lição: pelo menos três
teólogos foram demitidos da CDF. Os jesuítas exigem disciplina.
Cardeal Burke & Steve Bannon
Em 2013, pouco
tempo após a sua eleição e quando estava ainda num estado de quase universal
aclamação pela ousadia e simplicidade dos seus gestos — tinha-se mudado para um
par de singelos quartos no Vaticano, por oposição aos sumptuosos apartamentos
do Estado usado pelos seus antecessores —, Francisco expurgou uma pequena ordem
religiosa que se devotava à prática da missa tridentina, dita em latim.
Os Frades
Franciscanos da Imaculada, grupo com cerca de 600 membros, homens e mulheres, já
tinham sido colocados sob investigação por uma comissão em Junho de 2012, no
papado de Bento XVI. Eram acusados de combinar uma cada vez mais extremista
política de direita com a devoção à missa tridentina. (Esta combinação, que
surge frequentemente associada a declarações de ódio ao “liberalismo”, tinha
vindo também a espalhar-se online nos EUA e no Reino Unido, como é exemplo o
blogue do Daily Telegraph Holy Smoke, editado por Damian
Thompson.)
Quando a
comissão apresentou as suas descobertas em 2013, a reacção de Francisco chocou
os conservadores. Proibiu os frades de usarem a missa tridentina em público e
fechou o seu seminário. Continuaram a poder formar novos padres, mas não
segregados do resto da igreja. Mais, tomou estas decisões directamente, sem passar
pelo sistema judicial interno do Vaticano, à altura dirigido pelo cardeal
Burke. No ano seguinte, Francisco demitiu Burke do seu poderoso cargo no
sistema judicial do Vaticano. Nesse momento, ganhou um inimigo implacável.
Burke, um
americano robusto dado a vestes bordadas a renda e, em ocasiões formais, a uma
capa de cerimónias escarlate tão comprida que precisa de ser carregada por
pajens, era um dos mais conspícuos reaccionários do Vaticano. Em modos e em
doutrina, representa uma longa tradição de pesos-pesados americanos do poder do
catolicismo de etnia branca. A hierática, patriarcal e conflituosa igreja da
missa tridentina é o seu ideal, e ao qual parecia que a Igreja estava
lentamente a voltar sob o comando de João Paulo II e Bento VXI — até que
Francisco começou o seu trabalho.
A combinação de
anticomunismo, orgulho étnico e ódio ao feminismo do cardeal Burke inspirou uma
série de proeminentes figuras laicas de direita nos Estados Unidos, de Pat
Buchanan a Bill O’Reilly e a Steve Bannon, bem como outros intelectuais
católicos menos famosos, como Michael Novak, que têm batalhado incansavelmente
a favor das guerras americanas no Médio Oriente e da perspectiva republicana
sobre os mercados livres.
Foi o cardeal
Burke quem em 2014 convidou Bannon, já na altura a mente por trás do Breitbart
News, a dirigir-se a uma conferência no Vaticano via vídeo emitido na
Califórnia. O discurso de Bannon foi apocalíptico, incoerente e historicamente
excêntrico. Mas não foi inocente o seu chamamento para uma guerra santa: a
Segunda Guerra Mundial, afirmou, foi na realidade “o Ocidente judeu-cristão
contra os ateus” e agora a civilização está “nas etapas iniciais de uma guerra
global contra o fascismo islâmico… um conflito brutal e sangrento… que irá
erradicar completamente tudo o que nos foi legado nos últimos 2000, 2500 anos…
se as pessoas nesta sala, as pessoas da Igreja, não… lutarem pelas nossas
crenças, contra esta nova barbaridade que está a surgir”.
Tudo nesse
discurso é um anátema para Francisco. A sua primeira visita oficial fora de
Roma, em 2013, foi à ilha de Lampedusa, que se tinha tornado o ponto de chegada
de dezenas de milhares de desesperados migrantes vindos do Norte de África.
Como ambos os seus antecessores, opõe-se firmemente às guerras no Médio Oriente,
embora o Vaticano tenha apoiado relutantemente a extirpação do califado do
Estado Islâmico. Opõe-se à pena de morte e despreza e condena o capitalismo
americano: depois de marcar o seu apoio aos migrantes e aos homossexuais, a
primeira grande declaração política do seu pontificado foi uma encíclica,
dirigida a toda a Igreja, que condenava ferozmente o funcionamento dos mercados
globais.
“Algumas pessoas
continuam a defender teorias ‘conta-gotas’ [trickle-down, no original],
que assumem que o crescimento económico, encorajado por um mercado livre, irá
inevitavelmente resultar em maior justiça e inclusividade pelo mundo. Tal
crença, que nunca foi sustentada pelos factos, exprime uma confiança arrogante
e ingénua na bondade dos que exercem o poder económico e no funcionamento
sacralizado do sistema económico prevalente. Entretanto, os excluídos continuam
à espera.”
Acima de tudo,
Francisco está do lado dos imigrantes — ou emigrantes, como ele os vê —
expulsos de suas casas por um capitalismo infinitamente voraz e destrutivo, que
pôs em marcha mudanças climáticas catastróficas. Nos Estados Unidos, esta é uma
questão racializada e profundamente politizada. Os evangélicos que votaram em
Donald Trump e no seu muro são esmagadoramente brancos, tal como as lideranças
da Igreja Católica americana. Mas cerca de um terço dos laicos são hispânicos,
proporção que está a aumentar. Em Setembro, Bannon afirmou, em entrevista ao 60
Minutes da CBS, que os bispos americanos eram favoráveis à imigração em massa
apenas porque isso ajuda as suas congregações — embora isso vá mais longe do
que até os bispos mais à direita seriam capazes de dizer publicamente.
Quando Trump anunciou pela primeira vez que iria
construir um muro para impedir a entrada de imigrantes, Francisco esteve
muito perto de negar que o então candidato pudesse ser cristão. Na visão de
Francisco sobre as ameaças à família, os lavabos transgéneros não são o
problema mais urgente, como alguns activistas “guerreiros” culturais querem
fazer crer. O que destrói as famílias, escreveu, é um sistema económico que
força milhões de famílias pobres a separarem-se na sua busca por trabalho.
Uma “torrente de corrupção”
Além de lidar
com os praticantes da velha escola da missa tridentina em latim, Francisco deu
início a uma ampla ofensiva contra a velha guarda no interior do Vaticano.
Cinco dias após a sua eleição em 2013, convocou o cardeal hondurenho Óscar
Rodríguez Maradiaga e comunicou-lhe que iria ser coordenador de um grupo de
nove cardeais espalhados pelo globo cuja missão era limpar a casa. Foram todos
escolhidos pela sua energia e pelo facto de terem estado, no passado, em
conflito com o Vaticano. Foi uma medida popular em todo o lado, menos em Roma.
João Paulo II
passou a última década da sua vida cada vez mais incapacitado pela doença de
Parkinson, e a energia que lhe restava não era gasta em querelas burocráticas.
A Cúria, nome por que é conhecida a organização burocrática do Vaticano, foi
ganhando cada vez mais poder, estagnada e corrupta. Muito poucas medidas foram
tomadas contra os bispos que protegeram os clérigos que abusaram de crianças. O
Banco do Vaticano era tristemente célebre pelos serviços que oferecia para
lavagem de dinheiro. Os processos de canonização — algo que João Paulo II fez a
um ritmo sem precedentes — tinham-se tornado uma fraude extremamente cara: o
jornalista italiano Gianluigi Nuzzi estimou que o preço de tabela de uma
canonização andaria à volta dos 500 mil euros por auréola. As finanças do próprio
Vaticano estavam uma desgraça e até Francisco fez referência a “uma torrente de
corrupção” na Cúria.
O estado pútrido
da Cúria era bem conhecido, mas nunca discutido em público. Ao fim de nove
meses no cargo, Francisco disse a um grupo de freiras que “na Cúria também há
pessoas virtuosas, a sério, há lá pessoas santas” — de tal maneira assumia que
a sua audiência de freiras ficaria surpreendida por saber disso.
Afirmou que a
Cúria “toma conta e cuida dos interesses do Vaticano, que são, na sua maior parte,
interesses temporais. A visão ‘vaticanocêntrica’ negligencia o mundo à nossa
volta. Eu não partilho dessa visão, e farei tudo o que estiver ao meu alcance
para a mudar”. Declarou ainda ao jornal italiano La Repubblica:
“Várias vezes os chefes da Igreja foram narcisistas, lisonjeados e empolgados
pelos seus cortesãos. A corte é a lepra do papado.”
“O Papa nunca
falou bem dos padres”, diz o padre que mal pode esperar que ele morra. “É um
jesuíta anticlerical. Lembro-me bem dessas ideias nos anos 70. Costumavam
dizer: ‘Não me chames padre, chama-me Manuel’ — esse tipo de parvoíces — e nós,
o oprimido clero paroquial, sentimos que nos tiraram o chão.”
Em Dezembro de
2015, Francisco fez o seu tradicional discurso de Natal à Cúria e não poupou
nas palavras: acusou-a de arrogância, de “Alzheimer espiritual”, de “hipocrisia
típica dos medíocres e progressivo vazio espiritual que não pode ser preenchido
com diplomas académicos”, bem como de vão materialismo e gosto pela
bisbilhotice e maldizer — não é o tipo de coisa que se quer ouvir do chefe na
festa de Natal da empresa.
Contudo, quatro
anos decorridos sobre o início do seu papado, a resistência passiva do Vaticano
parece estar a levar a melhor sobre a energia de Francisco. Em Fevereiro deste
ano, apareceram da noite para o dia, nas ruas de Roma, posters que
perguntavam: “Francisco, onde está a tua misericórdia?”, atacando-o pela
maneira como tratou o cardeal Burke. Este episódio só pode ter sido obra de
elementos descontentes do Vaticano, e é um sinal inequívoco de uma teimosa
recusa em entregar poderes ou privilégios aos reformistas.
As igrejas do mundo ocidental estão cheias
de divorciados
Esta batalha,
porém, tem sido ofuscada, tal como todas as outras, pelas lutas internas
relativamente à moralidade sexual. A disputa sobre o divórcio e os novos
casamentos centra-se em dois factos. Primeiro, que a doutrina da Igreja
Católica não mudou em quase dois milénios — o casamento é eterno e
indissolúvel; isso é claro como água. Mas também o é o segundo facto: que os
católicos se divorciam e voltam a casar aproximadamente ao mesmo ritmo que o
resto da população e, quando o fazem, não vêem nada de imperdoável nisso.
Portanto, as igrejas do mundo ocidental estão cheias de divorciados e de casais
em segundas núpcias, que comungam com todos os outros, muito embora tanto eles
como os seus padres saibam que tal não é permitido.
Os ricos e os
poderosos têm desde sempre sabido explorar lacunas. Quando querem deixar uma
esposa e voltar a casar, um bom advogado consegue sempre arranjar maneira de
provar que o primeiro casamento foi um erro e não algo consumado no espírito
que a Igreja exige, e assim haver razão para que seja apagado dos registos —
ou, em jargão, anulado. Isto aplica-se especialmente a conservadores: Steve
Bannon conseguiu divorciar-se de todas as três mulheres que teve, mas o exemplo
contemporâneo mais escandaloso talvez seja o de Newt Gingrich, que liderou a
conquista republicana do Congresso nos anos 1990 e que desde então se
reinventou como aliado de Trump. Gingrich deixou a primeira mulher quando esta
estava a ser tratada a um cancro e, enquanto estava casado com a segunda
mulher, teve uma relação extraconjugal de oito anos com Callista Bisek, uma
católica devota, antes de casar com ela pela Igreja — Callista foi a pessoa
indicada para o cargo de nova embaixadora de Donald Trump no Vaticano.
A doutrina sobre
o casamento após o divórcio não é a única maneira pela qual a doutrina sexual
católica nega a realidade em que os laicos vivem, mas é a que causa mais danos.
A proibição da contracepção é simplesmente ignorada por todos, em todos os
sítios onde é legal. A hostilidade relativamente aos homossexuais é mitigada
pelo facto geralmente reconhecido de que grande parte dos clérigos do mundo
ocidental é gay e que alguns deles são bem-sucedidos
celibatários. A rejeição do aborto não é um problema onde o aborto é legal e,
de qualquer forma, não é uma questão particular da Igreja Católica. Mas a
recusa em reconhecer segundos casamentos, a não ser que o casal faça votos de
nunca ter relações sexuais, faz ressalvar o absurdo que é ter uma casta de
homens celibatários a regulamentar a vida das mulheres.
Em 2015 e 2016,
Francisco convocou duas grandes conferências (ou sínodos) de bispos de todo o
mundo para discutir estes assuntos. Sabia que não conseguiria avançar sem um
consenso alargado. Manteve-se em silêncio e encorajou os bispos a debaterem,
mas rapidamente se tornou notório que era a favor de um considerável
afrouxamento da disciplina à volta da comunhão após um segundo casamento. Dado
que, de qualquer maneira, é isso que acontece na prática, torna-se difícil para
quem está de fora entender o ardor que o assunto desperta.
“O que me
interessa é a teoria”, diz o pároco inglês que confessa o seu ódio por
Francisco. “Na minha paróquia há imensos divorciados e casais que voltaram a
casar, mas muito deles, se soubessem que o primeiro cônjuge tinha morrido, iam a
correr fazer um casamento na igreja. Conheço muitos homossexuais que fazem todo
o tipo de coisas que são erradas, mas sabem que não deviam ser assim. Somos
todos pecadores, mas temos de manter a integridade intelectual da fé católica.”
Com esta
mentalidade, o facto de que o mundo rejeita a doutrina serve apenas para provar
como está certa. “A Igreja Católica deve ser contracultura na ressaca da
revolução sexual”, afirma Ross Douthat. “A Igreja Católica é o último lugar
restante do mundo ocidental que defende que o divórcio é uma coisa má.”
Igreja como posto de primeiros socorros
Para Francisco e
os seus apoiantes, tudo isso é irrelevante. Francisco diz que a Igreja deve ser
um hospital ou um posto de primeiros socorros. As pessoas que se divorciaram
não precisam que lhes digam que o divórcio é mau, precisam de recuperar e de
refazer as suas vidas. A Igreja deve apoiá-las e mostrar misericórdia.
No primeiro
sínodo, em 2015, esta era ainda uma visão minoritária. Foi preparado um
documento liberal, que foi rejeitado pela maioria. Um ano depois, os
conservadores estavam em clara minoria, mas a sua determinação era grande. O
próprio Francisco escreveu um sumário das deliberações em “A Alegria do Amor”.
É um documento longo, reflectivo e cuidadosamente ambíguo. A dinamite está
escondida na nota 351 do capítulo 8 e assumiu uma imensa importância nas
convulsões subsequentes.
A nota
encontra-se anexada a uma passagem que vale a pena citar, tanto pelo que diz
como pela maneira como o diz. O que diz é claro: algumas pessoas que vivem em
segundos casamentos (ou em uniões de facto) “podem viver na graça de Deus,
podem amar e podem também crescer na vida da graça e da caridade, e para tal
podem receber a ajuda da Igreja”.
Mesmo a nota de
rodapé, onde se lê que tais casais podem receber a comunhão se tiverem
confessado os seus pecados, aborda o assunto com circunspecção: “Em certos
casos, isto poderá incluir a ajuda dos sacramentos.” Consequentemente, “quero
lembrar aos padres que o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas
antes um ponto de encontro com a misericórdia do Senhor”. E ainda: “Quero
também salientar que a eucaristia não é um prémio para os perfeitos, mas um
poderoso medicamento e alimento para os mais fracos.”
“Ao vermos tudo
a preto e branco”, acrescenta Francisco, “às vezes fechamos o caminho da graça
e do crescimento.”
Foi esta pequena
passagem que teve o condão de unir todas as revoltas contra a sua autoridade.
Ninguém consultou os laicos para saber o que pensam sobre o assunto e, de
qualquer forma, as suas opiniões não são do interesse do partido dos
introvertidos. Mas, entre os bispos, entre um quarto e um terço estão a
resistir passivamente à mudança, e uma pequena minoria está a fazê-lo
activamente.
O líder dessa
facção é o grande inimigo de Francisco, o cardeal Burke. Primeiro demitido do
seu cargo no tribunal do Vaticano e depois da comissão litúrgica, acabou no
conselho de supervisão da Ordem de Malta — um organismo de caridade
administrado pelas antigas aristocracias católicas da Europa. No Outono de
2016, demitiu o director da Ordem por supostamente ter permitido que freiras
distribuíssem preservativos na Birmânia, algo que as freiras fazem regularmente
nos países em desenvolvimento para ajudar a proteger as mulheres vulneráveis. O
director demitido apelou para o Papa.
O resultado foi
que Francisco readmitiu a pessoa que havia sido demitida e designou outro
responsável para assumir a maior parte dos deveres de Burke. A decisão foi um
castigo por Burke ter falsamente afirmado que o Papa tinha estado do seu lado
na querela original.
Entretanto,
Burke tinha aberto uma nova frente de batalha, que chegou o mais perto possível
de acusar o Papa de heresia. Juntamente com três outros cardeais, dois dos
quais morreram desde então, Burke elaborou uma lista de quatro perguntas
destinadas a estabelecer se Amoris Laetitia violava a doutrina
anterior. A lista foi formalmente enviada a Francisco, que a ignorou. Após a
sua demissão, Burke tornou as questões públicas e afirmou estar preparado para
emitir uma declaração formal de que o Papa era herege se as respostas não
fossem do seu agrado.
É óbvio
que Amoris Laetitia representa um corte com a doutrina
passada. É um exemplo da Igreja a aprender com a experiência. Mas isso é
difícil de assimilar para os conservadores: historicamente, estas rupturas
doutrinárias só aconteceram em períodos de convulsão e separadas por séculos.
Esta chega 60 anos apenas após a última irrupção de extroversão, com o Vaticano
II, e 16 anos depois de João Paulo II ter reiterado a velha linha dura.
“O que significa
que um Papa contradiga um Papa anterior?”, pergunta Douthat. “É incrível o quão
perto está Francisco de entrar em conflito com os seus antecessores imediatos.
Foi só há 30 anos que João Paulo II estabeleceu em Veritatis Splendor a
linha que Amoris Laetitia parece contradizer.”
O Papa Francisco está deliberadamente a contradizer um homem que ele
próprio proclamou como santo. Isso não é um problema para ele. Mas o facto de
ser mortal pode vir a ser. Quanto mais Francisco se afastar da linha dos seus
antecessores, mais fácil será para o seu sucessor reverter a sua. Embora a
doutrina católica vá naturalmente mudando, a sua força depende da ilusão de que
tal não acontece. Os pés podem tremer sob a batina, mas a túnica nunca deve oscilar.
Contudo, isso também significa que as mudanças que ocorreram podem ser
revertidas sem nenhum movimento oficial. Foi assim que João Paulo II respondeu
ao Vaticano II. Para garantir que as mudanças de Francisco perdurarão, a Igreja
tem de as aceitar. E isso é uma questão que não será respondida no seu tempo de
vida. Tem hoje 81 anos e apenas um pulmão. Os seus oponentes podem estar a
rezar pela sua morte, mas ninguém pode saber se o seu sucessor tentará
contradizê-lo — e o futuro da Igreja Católica paira agora sobre essa dúvida.
Brown, A. (2017). A guerra contra o Papa Francisco. In Jornal Publico. Acedido a 24/12/2017. Disponível em https://www.publico.pt/2017/12/24/sociedade/noticia/a-guerra-contra-o-papa-francisco-1796423?
* Tradução: António Domingos.